quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Simples, simplório

Dia chuvoso. Carro parado na porta. Na porta errada o carro estava parado, mas era apenas porque a chuva estava forte. Nessas horas não há lugar certo a parar. Achou melhor parar do que continuar conduzindo o veículo, ao passo de que a 50 metros de sua visão, a água vinha alastrando tudo e todos ao seu redor.

Resolveu ficar ali, até que o tempo, ao passar como hora do relógio, pudesse dá-lo uma luz do que fazer. E se demorasse 2 horas para que o temporal fosse? E se tudo aumentasse e chegasse até onde seu carro estava?

Ao parar o carro, não sabia mais o que fazer. Apenas parou, e olhava para a enxurrada com admiração, apesar dos estragos que ela causava. Não se sentia ameaçado parado ali. Não se sentia corajoso em ir ajudar quem pudesse. Não sentia nada ao seu redor. Aquilo pra ele parecia um espetáculo natural, onde não se encontra a qualquer hora, e nunca é do mesmo jeito.

E ficou. Esqueceu de onde vinha, pra onde estava indo...Simplesmente ficou ali, como se aquele fenômeno tivesse sido marcado em sua agenda. Esqueceu de que estava indo comprar leite ao filho, filho esse de apenas 10 meses de idade. Esqueceu que, ao sair de casa, tinha brigado com a mulher, casado há 3 anos. Por coisa boba, é verdade, mas que levou em consideração. Talvez o motivo maior de ele ter saido de casa não tenha sido o leite para o filho, e sim evitar maiores conflitos com a mulher. Dizia ele: “Depois de um tempo, ela vem todinha pra mim...”. Mas ele, apesar de acreditar nisso, estava magoado.

A chuva trouxe algo mágico pra ele naquele momento. Ele esqueceu dos problemas, das pessoas, dos assaltantes que ali poderiam estar, apesar do horário não ser muito conveniente para ladrões. Mas hoje em dia, não há mais horário para assaltos...

Ele estava totalmente parado, iludido por aquilo. Parecia nunca ter visto algo tão bonito quanto aquela tempestade violenta. Apesar dos estragos ele conseguia ver o lado artístico daquele fenômeno da natureza.

Aquele olho perplexado parecia dizer alguma coisa, mas eu não tinha tempo pra interpretar aquilo...

Estava eu, na chuva, precisando de um lugar para me abrigar, pelo menos até que a tempestade cessasse. Batia na porta do carro com toda a força, além dos pingos enormes da chuva provocar barulhos no automóvel, e os estalos do relâmpago iluminarem o céu e me deixarem mais preocupado. Eu só queria entrar no carro, e ele ali, parado, parecia estar fora de si. Não ouvia os meus gritos, a minha careta. Não sentia a minha presença. Tentei quebrar o vidro, mas era muito resistente para quem estava sem comer algo decente há 3 meses, alimentando-se apenas de água. Seu estado de transe não passava. Ele não esboçava nenhuma reação, nenhum motivo. Não vi seus olhos piscarem uma única vez.

A tempestade estava progredindo, e eu ali, sem saber pra onde ir. Minha única esperança estava inativa, parada, dentro do carro. Não sei o que se passava na cabeça dele. Me veio a cabeça de que ele estava esperando a morte....

No fim, ela veio a mim. Em meio a raios e vento forte que não puderam com a minha capacidade de continuar em pé, aquele oceano de água me levou pra longe. Depois de um tapa na cara pela água da chuva, só lembro-me quando estava no hospital, já deitado na maca, no quarto, sendo cuidado por uma enfermeira. A morte veio até a mim, mas não conseguiu me levar. Eu ainda precisava viver. Mesmo sem esperança, morando na rua, sem parentes, amigos e um cachorro pra me acompanhar, sempre achei que a vida me reservava algo melhor. Por mais no fundo do poço que eu esteja, e já morei em um por um tempo, a esperança nunca fugiu de mim.

Aquele que esperava a morte dentro do carro provavelmente saiu ileso. Sem arranhões, sem estragos no carro, apesar de ela ter me jogado pra longe. Não tenho rancor àquele sujeito. Eu nem o conhecia primeiramente. Apesar de eu estar aqui, com ferimentos profundos na cabeça, eu só desejo que a vida reserve um pouco de paz a ele. Pelo acontecido, acabamos nos conhecendo, e viramos amigos. Não perguntei se nos conhecemos por isso, se ele me ajudou etc... A única coisa que eu realmente precisava dizê-lo, e foi feita, é: “Por mais que seus olhos brilhassem diante daquela paisagem, e era fácil de enxergar isso, eu senti que você estivesse naquele lugar esperando a morte. Ela te deu uma segunda chance. Volte para casa, abrace o seu filho e dê um beijo na sua mulher. A tempestade interior é a pior que podemos enfrentar, ela nos mata mais do que qualquer outra. Viva, por favor.”

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